Poemas de Bárbara Lia | Poesia Contemporânea

Todos Os Dias Um Poeta
5 min readMay 19, 2021

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Bárbara Lia (Assaí, Brasil, 1955) é Poeta e Escritora. Publicou nove livros (poesia, romance e contos). Destaque em vários Prêmios Literários, entre eles: SESC, UFES, Helena Kolody e Newton Sampaio. Integra várias Antologias, entre elas: O que é poesia? (Confraria do Vento), O melhor da festa — 3 (Festipoa), Amar, verbo atemporal (Rocco), Arqueologia da Palavra _ Anatomia da Língua (Literatas_Maputo) e Fantasma Civil (Bienal Internacional de Curitiba). Vive em Curitiba.

Já sentiu que o chão não acaricia os pés e o céu não agasalha?

Sentiu o vento da indiferença em cada rua e cada aposento?

O bafo do descaso pelos corredores, os olhares atravessados e os sussurros à sua passagem?

Já bebeu o fel amargo da água que nunca é tua, o poço que nega a veia da partilha e portas fechando-se à sua passagem?

Sabe o que é ser forasteira do berço ao túmulo?

Eu sei

Eu sou

Sou um estilhaço de estrela

Que passou uma temporada

Plantando rosas no inferno

Sou uma menina cega e muda

Que viveu no Lupanar de Pompeia

Sou uma guerreira destroçada

Que desaba aos pés da deusa

A ela entrega a rosa impossível

E murmura: eu a colhi!

Dimensão Angústia

Na dimensão angústia não cabe o sabor felicidade

Dança de folhas vivas — balé de sombras na janela

Som de sinos dos ventos a invadir veias — letargia

Carpe diem Sinatra rosa quartzo chantilly no lábio

O doce macio flutuante rascante (nuvem na veia)

Na dimensão angústia olhar degela — piche fétido

Negra lágrima rasga a pele açucarada de perdas

“Perder é uma arte”, diz Bishop — poetas mentem!

Raça enganosa a esculpir torpes desvios para o fim

Diz para mim que água eles bebem? De que fonte?

Diz em que lugar penduram seus corações de feltro?

Onde os poetas leem suas doutrinas embaralhadas?

O que os leva ao rito estoico? A propalar belezas?

Na dimensão angústia nada sobrevive, e eles seguem

Pintando muros bradando versos tecendo a sangue

E o mundo vai virar escárnio e vai virar inferno…

Ainda assim eles estarão lá a bradar: em algum lugar

Em algum lugar eles viram um pássaro raro e único

Em algum lugar eles encontraram a nascente do céu

Em algum lugar um homem era feliz, além da dor -

Atrás do muro da vergonha. As formigas cantam

As borboletas governam e o poeta insiste, abissal

Reinventa Deus sem cerimônia e grita e grita e grita

Na dimensão angústia alguém corta sua garganta

No dia seguinte o pai diz à filha que é permitido

Na casa em frente o velho abandonado caminha

As paredes rugem dor milenar a gritar a morte

O velho está morto e não sabe e caminha e sorri

Na cadeira corpo morto emite gases ele não sabe

Que os mortos seguem mortos na sala vendo TV

Nada cessa na dimensão angústia, desmorona tudo

Só o poeta segue a tecer haicais e versos brancos

Milhares de pílulas de otimismo e doce paisagem

A dimensão angústia clama um verso purulento

Um verso ao menos que exale o cenário cruel

Um verso que diga que o mundo apodreceu há dias

Enquanto um poeta dizia da luz clara de Maria

Ou da onda azul que morreu aos pés da santa

Ou daquela tarde em que foi feliz em Biarritz

Alguma coisa qualquer que lembra ananás e flor

Esta epopeia insana: viver no mundo das matinês

Technicolor estupendo — sorriso de Marilyn Monroe -

Vendo um filme antigo na tela e o mundo lá fora

Dimensão angústia que — dia a dia — deteriora

A maçã, o punho, o útero…

Pêndulo invisível em um mundo palco

Não sou a poeta aclamada

Meu útero é do tamanho da primeira maçã

E confundo as lendas

E esmurro o primeiro homem (não o seduzo)

E esmurro o segundo e o terceiro

A serpente enlouquece

Diz alguma coisa como

“A mulher nasceu para conquistar”

Conquisto apenas os passarinhos

Eles assediam-me nas manhãs

Um deles prometeu ensinar-me

Os benefícios de ser fêmea

E a receita do pecado válido

O pecado abençoado

O pássaro diz:

Um punho é um punho

Um útero é um útero

Uma maçã é uma maçã

(creio mais nos passarinhos que nos poetas)

Meu corpo lembra Frida Kahlo. A marca que impede uma alma livre de ser plena, correr ao encontro de tudo. O congelamento do corpo em uma cama, em um espaço cerzido. Ela — Frida — não aceitou e pintou sua realidade com traços de luz/fogo/alfazema/lágrima e amou de um amor irrepreensível e nunca aceitou que o mundo a taxasse de menor ou pequena. Frida sussurra no meu travesseiro a ladainha da rebeldia: — Ergue este queixo bonito e pisa as flores da tua escolha, e ama e ama até forjar uma chuva de colibris acima dos abismos. Frida, Frida… Ainda estamos colhendo estas aves azuis com nossas mãos pequenas. Tua liberdade era estrela bastarda — eterna fagulha no céu — eu a agarro como quem monta uma égua dilacerada, pretendendo com ela atravessar a agonia do viver. E quando meu corpo esquece que é teu corpo eu contemplo este duplo meu e a minha voz interior diz claramente — Sou Frida à medula.

Decreto:

Proibido

derrubar

qualquer

árvore

(exceto

para

construir

berços

e violinos)

Mar absinto

Nossos olhos de dezoito anos
acomodaram o mar
Sobrou a maré em torno
um sussurro de conchas
e nos acordar nas noites brancas

Nossos olhos de dezoito anos
beberam do mar/absinto
como ao vinho santo.

Nossos olhos negros e azulados.
Uma sereia recolhendo a rede
os corações de dois poetas ali — enredados

Nossos olhos de dezoito anos
Nossas almas milenares.
Nossos amore fracos à soleira da incerteza.
Tanta beleza em ti, Rimbaud!
Tanta ausência em mim!

E nas marquises
bêbados ainda caminham
buscando o sol
que você guardou pra mim

Flor escandalosa

Meu pai sonhava o deserto e viveu ao lado do amor
Rimbaud pisou o deserto e sonho reinventar o amor
Rimbaud viveu o deserto; meu pai morreu de amor

O pai surfava o mar de estrelas
Com um teodolito da cor da destemperança
— verde oliva que pende ao amarelo —
Quando eu dormia, ele soprava poesia
Por cima das minhas cobertas
Rimbaud passava as noites regando com nuvens
Minha alma/fogo e a semente

Nasceu esta flor escandalosa
Da coar dos olhos do amor
E do deserto sonhado
Por meu pai e Rimbaud

Quando ele corria
pelos telhados de ardósia
as pombas arrulhavam
em ventania
seu casaco — vela sacudida
estremecia
a maré da monotonia

Tínhamos a mesma idade
Quando vimos o mar
Este mistério de impaciência
— Rimbaud e eu —

Por isto
Pisamos telhados
Ao invés de chão

Por isto
Machucamos nossos amores
Com nossas próprias mãos

Por isto
As velas acabam na madrugada
Antes que o poema acabe

— Por isto, tão pouco a vida para tanta
voracidade.

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