Poemas de Bárbara Lia | Poesia Contemporânea
Bárbara Lia (Assaí, Brasil, 1955) é Poeta e Escritora. Publicou nove livros (poesia, romance e contos). Destaque em vários Prêmios Literários, entre eles: SESC, UFES, Helena Kolody e Newton Sampaio. Integra várias Antologias, entre elas: O que é poesia? (Confraria do Vento), O melhor da festa — 3 (Festipoa), Amar, verbo atemporal (Rocco), Arqueologia da Palavra _ Anatomia da Língua (Literatas_Maputo) e Fantasma Civil (Bienal Internacional de Curitiba). Vive em Curitiba.
Já sentiu que o chão não acaricia os pés e o céu não agasalha?
Sentiu o vento da indiferença em cada rua e cada aposento?
O bafo do descaso pelos corredores, os olhares atravessados e os sussurros à sua passagem?
Já bebeu o fel amargo da água que nunca é tua, o poço que nega a veia da partilha e portas fechando-se à sua passagem?
Sabe o que é ser forasteira do berço ao túmulo?
Eu sei
Eu sou
Sou um estilhaço de estrela
Que passou uma temporada
Plantando rosas no inferno
Sou uma menina cega e muda
Que viveu no Lupanar de Pompeia
Sou uma guerreira destroçada
Que desaba aos pés da deusa
A ela entrega a rosa impossível
E murmura: eu a colhi!
Dimensão Angústia
Na dimensão angústia não cabe o sabor felicidade
Dança de folhas vivas — balé de sombras na janela
Som de sinos dos ventos a invadir veias — letargia
Carpe diem Sinatra rosa quartzo chantilly no lábio
O doce macio flutuante rascante (nuvem na veia)
Na dimensão angústia olhar degela — piche fétido
Negra lágrima rasga a pele açucarada de perdas
“Perder é uma arte”, diz Bishop — poetas mentem!
Raça enganosa a esculpir torpes desvios para o fim
Diz para mim que água eles bebem? De que fonte?
Diz em que lugar penduram seus corações de feltro?
Onde os poetas leem suas doutrinas embaralhadas?
O que os leva ao rito estoico? A propalar belezas?
Na dimensão angústia nada sobrevive, e eles seguem
Pintando muros bradando versos tecendo a sangue
E o mundo vai virar escárnio e vai virar inferno…
Ainda assim eles estarão lá a bradar: em algum lugar
Em algum lugar eles viram um pássaro raro e único
Em algum lugar eles encontraram a nascente do céu
Em algum lugar um homem era feliz, além da dor -
Atrás do muro da vergonha. As formigas cantam
As borboletas governam e o poeta insiste, abissal
Reinventa Deus sem cerimônia e grita e grita e grita
Na dimensão angústia alguém corta sua garganta
No dia seguinte o pai diz à filha que é permitido
Na casa em frente o velho abandonado caminha
As paredes rugem dor milenar a gritar a morte
O velho está morto e não sabe e caminha e sorri
Na cadeira corpo morto emite gases ele não sabe
Que os mortos seguem mortos na sala vendo TV
Nada cessa na dimensão angústia, desmorona tudo
Só o poeta segue a tecer haicais e versos brancos
Milhares de pílulas de otimismo e doce paisagem
A dimensão angústia clama um verso purulento
Um verso ao menos que exale o cenário cruel
Um verso que diga que o mundo apodreceu há dias
Enquanto um poeta dizia da luz clara de Maria
Ou da onda azul que morreu aos pés da santa
Ou daquela tarde em que foi feliz em Biarritz
Alguma coisa qualquer que lembra ananás e flor
Esta epopeia insana: viver no mundo das matinês
Technicolor estupendo — sorriso de Marilyn Monroe -
Vendo um filme antigo na tela e o mundo lá fora
Dimensão angústia que — dia a dia — deteriora
A maçã, o punho, o útero…
Pêndulo invisível em um mundo palco
Não sou a poeta aclamada
Meu útero é do tamanho da primeira maçã
E confundo as lendas
E esmurro o primeiro homem (não o seduzo)
E esmurro o segundo e o terceiro
A serpente enlouquece
Diz alguma coisa como
“A mulher nasceu para conquistar”
Conquisto apenas os passarinhos
Eles assediam-me nas manhãs
Um deles prometeu ensinar-me
Os benefícios de ser fêmea
E a receita do pecado válido
O pecado abençoado
O pássaro diz:
Um punho é um punho
Um útero é um útero
Uma maçã é uma maçã
(creio mais nos passarinhos que nos poetas)
Meu corpo lembra Frida Kahlo. A marca que impede uma alma livre de ser plena, correr ao encontro de tudo. O congelamento do corpo em uma cama, em um espaço cerzido. Ela — Frida — não aceitou e pintou sua realidade com traços de luz/fogo/alfazema/lágrima e amou de um amor irrepreensível e nunca aceitou que o mundo a taxasse de menor ou pequena. Frida sussurra no meu travesseiro a ladainha da rebeldia: — Ergue este queixo bonito e pisa as flores da tua escolha, e ama e ama até forjar uma chuva de colibris acima dos abismos. Frida, Frida… Ainda estamos colhendo estas aves azuis com nossas mãos pequenas. Tua liberdade era estrela bastarda — eterna fagulha no céu — eu a agarro como quem monta uma égua dilacerada, pretendendo com ela atravessar a agonia do viver. E quando meu corpo esquece que é teu corpo eu contemplo este duplo meu e a minha voz interior diz claramente — Sou Frida à medula.
Decreto:
Proibido
derrubar
qualquer
árvore
(exceto
para
construir
berços
e violinos)
Mar absinto
Nossos olhos de dezoito anos
acomodaram o mar
Sobrou a maré em torno
um sussurro de conchas
e nos acordar nas noites brancas
Nossos olhos de dezoito anos
beberam do mar/absinto
como ao vinho santo.
Nossos olhos negros e azulados.
Uma sereia recolhendo a rede
os corações de dois poetas ali — enredados
Nossos olhos de dezoito anos
Nossas almas milenares.
Nossos amore fracos à soleira da incerteza.
Tanta beleza em ti, Rimbaud!
Tanta ausência em mim!
E nas marquises
bêbados ainda caminham
buscando o sol
que você guardou pra mim
Flor escandalosa
Meu pai sonhava o deserto e viveu ao lado do amor
Rimbaud pisou o deserto e sonho reinventar o amor
Rimbaud viveu o deserto; meu pai morreu de amor
O pai surfava o mar de estrelas
Com um teodolito da cor da destemperança
— verde oliva que pende ao amarelo —
Quando eu dormia, ele soprava poesia
Por cima das minhas cobertas
Rimbaud passava as noites regando com nuvens
Minha alma/fogo e a semente
Nasceu esta flor escandalosa
Da coar dos olhos do amor
E do deserto sonhado
Por meu pai e Rimbaud
Quando ele corria
pelos telhados de ardósia
as pombas arrulhavam
em ventania
seu casaco — vela sacudida
estremecia
a maré da monotonia
Tínhamos a mesma idade
Quando vimos o mar
Este mistério de impaciência
— Rimbaud e eu —
Por isto
Pisamos telhados
Ao invés de chão
Por isto
Machucamos nossos amores
Com nossas próprias mãos
Por isto
As velas acabam na madrugada
Antes que o poema acabe
— Por isto, tão pouco a vida para tanta
voracidade.